Katerine Jucá, 35, é médica de família há cinco anos em uma unidade municipal de saúde em Acari, zona norte do Rio de Janeiro. Ela também faz parte de uma imensa lista de profissionais ameaçados e intimidados durante o exercício da profissão.
Dados do Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro) divulgados na última segunda (24) mostram que, em média, a cada três dias um médico sofre algum tipo de agressão, física ou verbal, durante a atividade profissional no estado.
Foram recebidas 546 ocorrências de médicos agredidos no período entre dezembro de 2018 e junho de 2023. Destes casos, 332 foram registrados como agressões verbais e 75 como agressões físicas. Houve ainda 24 notificações de ameaças ou intimidações e 115 de assédio moral.
Katerine disse que foi ameaçada por uma moradora da região, que chamou o tráfico local. A médica afirmou que não chegou a ser agredida fisicamente.
“Uma paciente estava acamada, tinha tido um episódio de depressão e parou de tomar os medicamentos do HIV sem avisar. A vizinha achou que eu tinha que parar meu atendimento para visitá-la, mas a visita domiciliar é agendada. Falei que não podia e ela chamou o poder local”, afirma a médica.
“Ele [um traficante] foi até a minha sala e perguntou por que eu não tinha ido lá. Foi até educado, mas é uma forma de intimidar. Aquilo de ‘você não sabe com quem está mexendo’.”
Em outro episódio, foi ofendida pela avó de uma criança. “Fiz uma denúncia no Ministério Público por conta de negligência familiar. Uma avó foi lá, bateu a porta, me xingou, gritou, mas não me agrediu fisicamente”, diz a médica. “Eles entendem determinadas situações como se fosse pessoal.”
O levantamento do Cremerj foi divulgado pelo conselho na última segunda-feira (24), após o caso da médica Sandra Bouyer, agredida durante um plantão em um hospital municipal da zona norte. Pai e filha suspeitos da agressão foram detidos.
“É claro e evidente que há um excesso no caso. Não se faz justiça com injustiça”, afirma Claudio Rodrigues, advogado de defesa de André Luiz Soares e Samara Soares, a dupla presa no caso.
Enquanto a médica era vítima das agressões, uma idosa de 82 anos, internada na sala vermelha em que Sandra dava expediente, morreu após sofrer uma parada cardiorrespiratória.
O levantamento do Cremerj foi feito com dados coletados do Portal da Defesa Médica, lançado em novembro de 2018. O conselho diz que o portal foi criado “com o intuito de agir com celeridade em casos mais graves, como de agressão.”
A maioria dos casos (293) ocorreu em unidades públicas de saúde; 144 notificações saíram de unidades privadas; 109 não tiveram registro de onde ocorreram.
A maioria das agressões foi contra médicas, de acordo com o conselho: houve 338 casos de mulheres agredidas e 208 de homens agredidos na série histórica. Neste ano, 62,5% dos episódios aconteceram contra elas.
“Os números são preocupantes. É inadmissível que um médico seja agredido durante o seu exercício profissional. O que vimos no caso da médica covardemente agredida, infelizmente, não foi pontual”, afirma o presidente do Cremerj, Guilherme Nadais.
A secretaria estadual de Saúde afirmou que possui seguranças em todas as unidades de saúde estaduais e que há suporte da Polícia Militar nas unidades hospitalares. “Os profissionais vítimas de agressão são contatados sempre que a secretaria recebe a informação da equipe de Humanização da Secretaria”, disse a pasta, em nota.
A secretaria municipal de Saúde diz que as unidades de saúde contam com profissionais de vigilância desarmados e que, em caso de intercorrência, autoridades policiais são acionadas. Mas agentes públicos de saúde que atuam no município reclamam que os profissionais são contratados como porteiros, não como vigilantes.
No Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, a lista de funcionários do hospital municipal Francisco da Silva Telles, onde a médica foi agredida e a idosa morreu durante um plantão, não consta seguranças ou vigilantes cadastrados como funcionários, apenas agentes de portarias.
“Houve a criação dessa figura do agente de portaria, que está em todas as unidades, mas o vigilante e uma mão de obra especializada. Mesmo trabalhando desarmado, como era o caso antigamente, ele é quem pode dar conta de situações de risco”, afirma Humberto Rocha, presidente do Sindvig-Rio (Sindicato dos Vigilantes do Rio).
O Cremerj diz que se reuniu mais de uma vez com o comando-geral da Polícia Militar para avaliar medidas que garantam mais segurança aos médicos. Em junho, o conselho aprovou uma resolução que determina que todas as unidades de saúde do estado forneçam seguranças.
Fonte: Folha de São Paulo