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Precisamos falar sobre masculinidade

Por Renata Souza

Foto: Reprodução

Precisamos falar sobre o modelo de masculinidade vigente. Tratar essa temática é convidar a nossa sociedade a repensar o modelo de masculinidade atual. Há algum tempo, a partir de meus estudos de gênero, das observações, dados estatísticos, conversas com homens, relatos de outras mulheres e experiências pessoais, fui levada a formular a seguinte hipótese, seja ela: o modelo de masculinidade vigente está falido! Em outras palavras, precisamos, como sociedade, repensar os papéis do masculino. É urgente reexaminar a “forma com a qual fabricamos” nossos homens. E esse convite é para todos, isto é, homens e mulheres. A sociabilidade masculina pautada em valores patriarcais e machistas já não cabe mais na atualidade.

O modelo de masculinidade calcado na agressividade, virilidade e belicosidade está nos matando. Nós, mulheres, somos as maiores vítimas desse modelo que acredita e quer manter uma suposta superioridade masculina. Não podemos compactuar com essa ideia, precisamos romper com a lógica e prezar por relações simétricas e saudáveis. Precisamos desconstruir a ideia de que homem de verdade não leva desaforo para casa, não chora, não sente dor e principalmente que ele tem que provar a sua virilidade e masculinidade 24 horas por dia.

Precisamos romper com o paradigma no qual o homem pensa estar ajudando a sua esposa quando ele toma conta do próprio filho; quando divide as contas e não quer dividir os trabalhos domésticos; quando não aceita o término de um relacionamento; quando não assume a paternidade de seus filhos e os abandona. E principalmente com o do homem que acha que pode violar o corpo de uma mulher.

E é importante entender que esta crítica não é direcionada a Pedro, João ou José, mas sim ao modelo de sociabilidade masculina vigente em nossa sociedade. Segundo o antropólogo Rolf Malungo, “nas sociedades urbanas industriais, a masculinidade é uma experiência coletiva, em que um homem busca reconhecimento através de práticas com as quais conquistará visibilidade e status social perante seu grupo”. Malungo segue nos dizendo que as práticas sociais masculinas podem divergir de acordo com classe, região, origem étnica e religião, o que confirma sua tese de que a masculinidade, assim como qualquer identidade humana, não é universal ou uma determinação biológica.

Não dá para continuar fazendo homens como antigamente, isto é, como um modelo de masculinidade hegemônica que se estrutura em valores que naturalizam a misoginia. O machismo não vitimiza só nós mulheres. Os homens também adoecem e morrem vítimas desse modelo de sociabilidade. Os homens vão menos ao médico e consequentemente cuidam menos de sua saúde, fator que os leva à morte por uma série de doenças que poderiam ser evitadas com tratamento preventivo. Os altos índices de violência praticadas pelos homens também são um termômetro da falência do modelo de masculinidade vigente.

No campo afetivo, o machismo não deixa barato. Muitas famílias são destruídas e filhos, frustrados, porque nunca receberam um beijo e um abraço do próprio pai, nunca ouviram palavras de afeto e carinho em momento de fraqueza e dor. São filhos que vivem uma vida inteira buscando o reconhecimento e o carinho daqueles que foram socializados sob a égide da dureza, segundo a qual demonstrar carinho e afeto pode, de alguma forma, fazê-los serem vistos como menos viris. Desse modo, quando a masculinidade é construída em cima de outros valores, quando homens optam por ser gentis, educados e carinhosos, são vítimas de outros homens que entendem esses valores como femininos.

O que dizer dos homens que rompem com a heteronormatividade e têm a coragem de assumir relações afetivas com outros homens? Esses últimos têm seus rostos e corpos constantemente estampados nas páginas policiais ou nos obituários. São julgados e sentenciados pelo tribunal da “sagrada masculinidade heterossexual”. É bom lembrar que a masculinidade hegemônica é construída em cima dos valores da branquitude, heteronormatividade e burguesia. Logo, os privilégios da masculinidade não são distribuídos ou usados de modo uniforme por todos os homens. Há, como mostrado por Malungo, “uma assimetria baseada na classe, raça/etnia, religião e, obviamente, orientação”.

Nosso modelo de masculinidade precisa ser repensado urgentemente. As evidências chegam a todo tempo de todas as partes do Brasil. Só na cidade de Campos dos Goytacazes, neste ano de 2023, tivemos dois casos emblemáticos que denotam a falência do modelo de masculinidade vigente. O primeiro caso foi o de uma engenheira, grávida de oito meses, que foi assassinada. De acordo com as investigações policiais, o crime teve como possível autor intelectual e mandante o companheiro da engenheira, ou seja, o pai do filho que ela carregava em seu ventre. Este também faleceu em decorrência do crime. Trata-se de um homem casado que não queria que, com o nascimento do bebê, o relacionamento com a engenheira viesse à tona. O outro caso foi o de uma técnica de enfermagem assassinada pelo ex-marido que não aceitava o término do relacionamento. Este, após cometer o feminicídio, ceifou a própria vida no local do crime, deixando a filha deles órfã de pai e mãe.

Além desses episódios chocantes em nossa cidade, em julho de 2023 em Belo Horizonte, tivemos o de uma jovem de 22 anos, que foi deixada sozinha, desacordada, de madrugada no portão de sua casa por um motorista de aplicativo. Naquela ocasião, um homem, que passava pelo local e viu a mulher desacordada e sozinha, se achou no direito de violar o corpo da jovem, colocou-a nas costas e levou-a para um campo de futebol, onde a estuprou por três horas.

Infelizmente, casos de violência sexual no Brasil são mais comuns do que podemos imaginar. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve, em 2022, número recorde de casos de estupro da história do país. Foram 74.930 vítimas; isso, de casos registrados. Mas tenho certeza de que há muita subnotificação desse tipo penal, haja vista uma série de fatores que impedem a denúncia, tal como: a culpabilização da vítima por causa da roupa ou do local em que estava na hora do crime; o fato de as principais vítimas serem crianças na faixa etária de 0 e 13 anos; e, principalmente, o fato de o agressor ser, em sua grande maioria, conhecido ou familiar. Conforme o Anuário, 68,3% dos casos aconteceram dentro da residência da vítima.

Minha ideia inicial com este texto era falar sobre violência sexual. Mas não dá para falar de violência sexual de forma honesta sem questionarmos o modelo de masculinidade vigente. Precisamos problematizar a ideia de masculino. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada hora, quatro meninas com menos de 13 anos são vítimas do crime de estupro. Além disso, sete em cada dez vítimas de feminicídio foram mortas dentro de casa por seus parceiros ou ex-parceiros, o que denota crescimento da violência contra mulher.

E o pior de tudo isso é que, no país em que, nos últimos quatro anos, Deus e a família se tornaram os bastiões da pátria, a maioria dos crimes é cometido por um familiar ou por alguém próximo à vítima. Mais uma vez, digo: é urgente repensar o modelo de masculinidade vigente! Do contrário, vai chegar o dia em que a probabilidade de uma menina aprender a ler será menor do que as chances de ela ser estuprada.

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