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Vitimismo, recalque, mimimi, identitarismo e outras formas de desqualificar a luta contra o racismo

Por Renata Souza

Foto: Agência Senado

Brasil: grande parte da população é formada por pessoas pretas ou miscigenadas. Arrisco a dizer que o número de pessoas pretas aumentaria, se o racismo não fosse tão cruel em nossa sociedade. Não dá para culpar os negros não identificáveis, pois ser preto no Brasil não é nem um pouco agradável. Esse marcador social da diferença, a cor da pele, carrega um legado de descaso e violência.

Os homens negros morrem mais, vítimas das mais variadas formas de violência e têm os piores postos de emprego. As mulheres negras são as que ocupam também as piores atividades laborais, as menos remuneradas e de menor status social. Isso significa que há uma continuidade das atividades laborais desenvolvidas no período escravocrata.

Nós, mulheres negras, somos as maiores vítimas da violência doméstica e as que menos se casam formalmente ou têm relacionamentos estáveis. Não há obrigatoriedade de as pessoas se casarem, porém o casamento é uma instituição valorizada em nossa sociedade, e a não ocorrência para um grupo muito específico é sintoma de que tem algo a ser problematizado. Os dados do IBGE, em seu estudo sobre Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, apontam que em nosso país existem 11,4 milhões de famílias chefiadas por mães solteiras, e a grande maioria (7,4 milhões) é composta por mulheres negras.

Esses dados apontam para as permanências das ideologias racistas e machistas presentes em nosso “Admirável Mundo Novo”. Isso ocorre porque o modelo de relacionamento inaugurado no período colonial serve de parâmetro até hoje. Gilberto Freyre, em sua consagrada obra “Casa Grande e Senzala”, narra o modelo de sociedade forjada no Brasil colonial, na qual o negro era o pilar do trabalho braçal, tanto o homem quanto a mulher negra eram vistos meramente como um corpo de serviço. Como podemos ver, esse modelo ainda é o subsídio que estrutura as relações sociais.

Freyre nos mostra um ditado popular muito comum nesse período, “A branca para casar, a mulata para fornicar e preta para trabalhar”. O ditado nos ajuda a entender como se consolidaram os lugares sociais de determinadas mulheres na hierarquia social e afetiva do Brasil. Nesse sentido, no desenvolvimento das atividades laborais, a mulher negra figurava no topo da pirâmide laboral da sociedade colonial. Era dela a responsabilidade de limpar, cuidar, servir, criar e até mesmo amamentar os filhos dos senhores e senhoras escravocratas.

A mulher negra não servia só na cozinha: a cama do senhor era uma atividade extra. O estupro era uma realidade tão cruel quanto o uso dos filhos desse crime para a renovação do estoque de mão de obra. Sendo assim, o senhor colonial montou sua própria pirâmide hierárquica e colocou a mulher negra, no que diz respeito aos relacionamentos ou uniões civis, fora de qualquer classificação.

As relações de poder criaram a naturalização do preconceito contra as mulheres negras – contra a população negra como um todo, mas quero fazer, neste momento, um recorte de gênero -, a começar pelo preconceito estético. A beleza da mulher negra não é reconhecida. O cabelo da mulher negra ainda é fonte de chacotas e é base de enriquecimento da indústria cosmética, que lucra com a imposição do padrão europeu do cabelo liso, considerado o mais bonito, sinônimo de higiene, cuidado e asseio pessoal. A supremacia branca ditou, exclusivamente, por muitos anos o que era beleza. Gerou padronização e, consequentemente, insegurança na mulher negra sobre sua autoimagem, o que fez com que meninas e mulheres se odiassem por muito tempo por não terem cabelo liso e a pele branca.

Hoje, com o avançar das lutas contra o racismo e por igualdade de condições, há uma reação daqueles e daquelas, historicamente, ocupantes de lugares privilegiados, que nunca sofreram discriminação e preconceito por conta de sua estética. Esses privilegiados nunca tiveram sua humanidade negada por conta das características físicas ou tiveram seus ascendentes escravizados e humilhados por mais de 300 anos no Brasil. Nunca foram perguntados na porta do seu novo emprego se “eram da limpeza” (nada contra ser da limpeza, mas parece que preto só pode ser da limpeza). Nunca foram parados na blitz simplesmente por ser negro. Nunca ouviram: “Ela é bonita, mas é negra”.

Somos censurados quando uma situação visivelmente racista nos acontece e sempre ouvimos: “Pega leve, você vê racismo em tudo, só foi uma brincadeira”. Você, provavelmente, nunca deixou de ser apresentado para a família de sua nova namorada ou namorado, porque a família dela(e) não aceitaria o seu “gosto estranho” para relacionamentos.

Talvez você nunca tenha ouvido o seu/sua crush dizer que você é recalcada(o) quando ele(a) decide assumir publicamente um relacionamento com uma pessoa branca, depois de romper um relacionamento de meses ou até mesmo anos, às escondidas, com uma mulher ou homem negro. Talvez você nunca tenha ouvido seu paciente lhe dizer que não queria seu atendimento pelo simples fato de você ser negro, ou como costumam dizer aqui no Brasil – para não ofender, né! -, “Pessoa de cor”.

Talvez você seja contra as cotas para negros no vestibular e no concurso público. Talvez você nunca tenha ido para uma entrevista de emprego, e a vaga tenha sido imediatamente preenchida ao ser constatado que você é negro. Ou nunca tenha tido um contrato de trabalho, todo feito por e-mail, cancelado ao se verificar, no encontro presencial, a cor da sua pele. Mas, se denunciamos, é vitimismo.

Nossa perspectiva, nossas experiências e nossa voz foram historicamente silenciadas e, quando resolvemos não mais nos calarmos ou deixarmos o outro falar por nós, as acusações vêm de todos os lados. Somos taxados de chatos, mimizentos, recalcados, vitimistas, identitários.

Talvez você nunca tenha vivenciado uma situação igual às apontadas acima por um motivo bem simples: você é branco(a). Ou você é uma pessoa preta, sem letramento racial, que já passou por isso e não conseguiu identificar que estava sendo vítima do racismo à brasileira, que opera de forma sutil e até mesmo “divertida”. Como disse a filósofa e feminista Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?”, “Sim, o Brasil é racista, e o ódio contra a população negra existe desde que o primeiro navio negreiro aqui chegou”. Só por isso você não enxerga…

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