“Filho feio não tem pai” e o bonito também não

Por Renata Souza

Foto: Reprodução

Quando comecei a minha graduação em Ciências Sociais, lá nos idos de 2005, não entendia o fascínio de um professor argentino com os ditados populares do Brasil. Ele, à época, mantinha um caderninho em sua companhia para catalogar os ditados populares que ouvia e, sempre, aguardava ansiosamente o momento de poder fazer uso da expressão idiomática recém aprendida, seja, na oralidade ou em seus textos escritos. Lembro-me vividamente que a expressão “o pulo do gato”- era uma de suas favoritas!

Só com o passar dos textos de sociologia e antropologia, fui compreendendo o porquê do fascínio de meu professor de Sociologia com os ditados populares do Brasil. Os ditados populares, ou provérbios, como também são conhecidos, têm a função social de fazer a manutenção de certas formas de pensar, agir e sentir. Os ditados populares, como o nome já nos dá indício, estão “na boca do povo”, ou seja, são de conhecimento popular e de fácil reprodução e, possivelmente, de fácil compreensão. Além disso, têm como função social passar uma sabedoria, lição, ideologia ou conhecimento de quem fala para os que ouvem. Que “atire a primeira pedra” quem nunca ouviu de uma pessoa, que, geralmente, ocupa uma posição hierárquica superior, um dos clássicos dos ditados populares e também da nossa hipocrisia popular: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”!

Ditados populares e provérbios não existem apenas em nossa cultura, inclusive, fazemos uso de várias expressões e provérbios estrangeiros em nosso dia a dia. Obviamente, essas expressões ao chegarem aos trópicos passam pelo nosso “jeitinho brasileiro”, isto é, são devidamente abrasileiradas para fazer sentido dentro de nossa realidade social. Afinal, “quem não tem cão, caça com gato”, e “quem tem boca, vai a Roma”. Essa última, por exemplo, é um desses casos de adaptação, pois a frase era “Quem tem boca vaia Roma”, ou seja, no princípio era uma expressão que nasceu para criticar os imperadores romanos, e não para dizer que quem se comunica vai mais longe. No Brasil, a igreja católica também contribuiu para o nosso rol de ditados populares, pois grande é a lista de expressões idiomáticas de cunho religioso de que fazemos uso em nossa comunicação, afinal “Deus escreve certo por linhas tortas”.

Mas o que realmente me interessa nesses ditados populares e provérbios é observar o quanto eles contribuem para a manutenção do status quo em nossa sociedade, ou seja, para manutenção da ordem vigente. Os ditados populares estão, na maioria das vezes, a serviço do machismo, do racismo, do patriarcado e da hipocrisia, quando reforçam estereótipos e comportamentos de submissão. Quando mobilizamos um ditado popular para dar conta de uma realidade ou até mesmo para encerrar uma debate, nós estamos deixando as coisas do jeito que elas sempre foram e negando as possibilidades de mudanças, afinal, “ele nunca me bateu”, “ruim com ele, pior sem ele”, “mulher no volante, perigo constante”, “preto de alma branca”, “dinheiro não traz felicidade” e “filho feio não tem pai.”

São frases de efeito e, na maioria das vezes, nem paramos para pensar no real sentido e significado delas; simplesmente reproduzimos sem nenhum tipo de reflexão ou crítica. Mas não se enganem, elas não são inofensivas. Essas frases são indícios de como a nossa sociedade se configura. Podemos olhar os ditados populares como verdadeiros dispositivos ideológicos de manutenção de privilégios e de naturalização de desigualdades de classe, raça e gênero, pois, “onde há fumaça há fogo.”

Por exemplo, o dito popular, “filho feio não tem pai”, em regra é utilizado para se referir a ações e práticas que deram errado e ninguém se responsabiliza pela autoria. Ao trazermos esse ditado para a vida real, observamos que ele encontra uma correspondência nas práticas sociais. Isso ocorre porque, quando crianças e adolescentes têm condutas consideradas “erradas” ou acontece alguma coisa com a segurança e integridade delas, a nossa sociedade não hesita em perguntar onde está a mãe. Ninguém pergunta pelo pai ou responsabiliza-o. Isso acontece porque a nossa sociedade naturalizou que a responsabilidade do cuidado com os filhos é exclusivamente feminina.
O filho é tão da mãe, que tem até um ditado popular/ xingamento que diz: “filho da mãe”. E, dependendo de quem fala, “mãe” é substituído por um substantivo menos glamuroso e com valor moral negativo. Se uma mulher abandona o filho, é julgada sem dó nem piedade nos “tribunais” da opinião pública e, muitas vezes, da Vara de Família. Mas aos homens é “dado o direito” de viver suas vidas longe dos filhos, sem nenhum tipo de responsabilidade, preocupação e, talvez, até sem culpa.

A naturalização da ausência paterna – que denominei aqui de paternidade flexível, optativa e de final de semana – é uma variável que impacta a realidade social, com efeitos práticos na sobrecarga feminina, além, obviamente, da saúde mental dos filhos. O número de crianças e adolescentes sem a presença paterna formal em suas vidas é tão grande que algumas escolas no Brasil afora têm substituído o dia dos pais, pelo dia da família. Isso é feito com objetivo de evitar o constrangimento das crianças que não podem contar com o pai presente na festinha. Afinal, “não adianta chorar pelo leite derramado”; à medida que a sociedade avança, novas formas de lidar com velhos problemas vão surgindo, mesmo que essas novas formas de “resolver” não levem em consideração que é “melhor prevenir do que remediar.” Isto é, buscar formas de responsabilizar os homens, não só no que tange a pagamento de pensão, algo essencial para reprodução da vida material em uma sociedade capitalista, mas também, no que diz respeito à responsabilidade afetiva, do cuidado e da presença na vida dos filhos.

“Filho feio não tem pai”. Mas as estatísticas mostram que os bonitos também não o têm. Segundo dados do Portal de Transparência do Registro Civil, o Brasil em 2023 teve mais de 100 mil crianças sem identificação paterna. Em outras palavras, foram quase 500 crianças registradas por dia em nosso país, sem o nome do pai no registro civil. Obviamente, quem é mãe sabe que o nome do progenitor no registro civil não garante que ele será pai, ou seja, que vai cumprir as prerrogativas básicas da função, mas garante direitos fundamentais de cidadania para os filhos. E, como diz o ditado, se “o pior cego é o que não quer ver”, não adianta os homens acharem que só pagar a pensão alimentícia é suficiente para ter o amor dos filhos. Pensão e, como já disse, um direito fundamental dessas crianças. Mas é necessário compreender, como já nos ensinou Bell Hooks: “amor é uma ação, nunca simplesmente um sentimento.” Em outras palavras, ser pai está para além das formalidades burocráticas única e exclusivamente.

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