Quando se é negro ou negra em uma sociedade que viveu as mazelas da escravidão, precisamos a todo tempo provar que somos dignos de estarmos em algum lugar ou que somos merecedores de alguma coisa. É comum, para alguns, ouvir de nossas mães que devemos ser duas vezes melhores por sermos pretos. Essa fala foi belamente musicada e problematizada pelos Racionais MC’s, que nos fizeram a seguinte pergunta: “Como fazer duas vezes melhor, se você está, pelo menos, cem anos atrasado?”
O regime escravocrata deixou marcas que pairam até hoje em nossa sociedade. E se apresentam de forma direta, via violência estatal, por exemplo, que mata a população negra de forma desmedida. E, também, de forma indireta, inscrita na nossa subjetividade, fazendo com que nós queiramos renunciar a nossa identidade para sermos aceitos e até mesmo nos mantermos vivos em uma sociedade que associa as características das pessoas negras a coisas ruins.
Vivemos durante muito tempo com a ideia de que não existia racismo no Brasil, e isso trouxe uma série de consequências negativas para a população negra. Ou melhor, consequências negativas para a sociedade brasileira como um todo. Mas, sem sombra de dúvidas, é a população negra que paga a conta do racismo, porque somos nós que morremos, somos nós que somos vistos como bandidos, como feios ou como objeto sexual.
Basta olhar para a história do Brasil para verificar como esse arranjo racista se organizou. Abolir a escravidão e deixar os negros libertos à própria sorte, sem nenhum direito e acesso à distribuição de riquezas, colocou a população negra em uma situação de grande desigualdade social. Assim, como disse a filósofa negra Djamila Ribeiro, em seu “Pequeno manual antirracista”, “o racismo é um sistema de opressão que nega direitos, e não um simples ato da vontade de um indivíduo”. Ele está inscrito no nosso sistema simbólico, ele está na não presença do negro em espaços de poder. Ele está na invisibilidade da população negra. Ele está no “negrocídio” diário da população negra.
A herança do sistema escravocrata ainda determina a forma como a sociedade se organiza. Ainda vemos o negro como inferior, sim, porque o fato de eu ser negra não me livra de reproduzir o racismo. No momento em que eu alisava meus cabelos, tentando apagar as características da minha negritude, eu estava sendo racista. Às vezes que eu fiquei com medo de entrar em uma loja cara, eu estava sendo racista. Às vezes que eu não me achei bonita, eu estava sendo racista. Às vezes que eu pensei que a vida acadêmica não era para mim, eu estava sendo racista. Por que eu estava sendo racista? Porque eu havia encampado o discurso do opressor, isto é, convenci-me da inferioridade e da subalternidade que diziam que pessoas negras tinham.
Precisamos reconhecer o nosso racismo para que possamos combatê-lo, afinal, em algum grau, somos todos racistas. O racismo mata! A intelectual negra Lélia Gonzalez nos lembra que: “Não se nasce negro, a gente se torna negro”. Isto é, ser negro vai além de ter a pele negra, é também um processo político de reconhecimento e ruptura com a ordem racista. Mano Brawn estava certo em seu questionamento: nós não precisamos ser duas vezes melhores. “Nós precisamos é de oportunidade”!, como nos disse a atriz afro-americana Viola Davis.