STF julga ADPF 635 e recebe relatório que expõe impacto da violência policial nas favelas do Rio de Janeiro

Um novo relatório técnico será entregue aos ministros do STF como subsídio à decisão

Por Luana Clara

Foto:Tânia Rêgo/Arquivo/Agência Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar nesta quarta-feira (13), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, também conhecida como “ADPF das Favelas”. A decisão é aguardada por movimentos sociais e instituições de defesa dos direitos humanos, que reivindicam uma resposta às sucessivas violações nas favelas do Rio de Janeiro. Um novo relatório técnico será entregue aos ministros do STF como subsídio à decisão. Produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF), pela organização Redes de Desenvolvimento da Maré e pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o documento defende metas rigorosas de controle da letalidade policial e propõe uma redução de 70% nas mortes por intervenção do Estado em um ano.

O documento sublinha a necessidade de metas ousadas bem definidas e monitoramento contínuo sobre as operações policiais, ressaltando que o modelo atual de operações militares é especialmente letal para a população negra e pobre. “A ADPF 635 se dirige ao Estado Inconstitucional de Coisas identificado com respeito à segurança pública no Estado do Rio de Janeiro e visa, portanto, à adequação do Estado à constitucionalidade democrática e ao respeito aos direitos humanos”, reforça o relatório. Desde o ajuizamento da ADPF, em 2019, por iniciativa do Partido Socialista Brasileiro (PSB), a Defensoria Pública e outras 13 entidades também se somaram como subscritoras, impulsionando o pedido de limitação legal do uso da força estatal em territórios periféricos.

Um padrão de letalidade alarmante

Os dados apresentados pelo relatório denunciam um quadro alarmante de violência contra as populações faveladas, onde o aumento da letalidade policial tem raízes profundas e estruturais. Entre 2013 e 2019, o Rio de Janeiro viu a letalidade policial crescer 336,1%, com um aumento no percentual de mortes por intervenção de agentes do Estado que passou de 7,8% para 30,3% do total de mortes violentas no estado. O relatório alerta que esse patamar permanece elevado até hoje, com uma recente redução para 20,4%, ainda muito acima do limite de 10% que é considerado indicativo de abuso letal, segundo padrões internacionais. “A média nacional para esse tipo de letalidade é de 12%, e índices superiores a 10% já são considerados sinais claros de abuso de força”, observa o documento.

Para fundamentar o pedido de redução de 70% na letalidade policial, o estudo expõe comparações com outros parâmetros internacionais. Um exemplo citado é o estudo de Paul Chevigny, que define como abusivo qualquer índice em que mais de 10 pessoas são mortas por cada policial em serviço. No Rio de Janeiro, essa razão chegou a 79 civis mortos para cada policial em serviço. Além disso, o índice de letalidade das operações policiais na região metropolitana do Rio foi de 0,94 civis mortos para cada civil ferido, enquanto o índice aceitável pela Cruz Vermelha é de 1 morto para cada 4 feridos.

Racismo estrutural e o impacto desproporcional nas favelas

A análise também aborda o racismo estrutural que permeia a atuação policial no Rio de Janeiro, sendo as operações nas favelas majoritariamente letais para jovens negros e pobres. No Conjunto de Favelas da Maré, onde foram colhidos dados detalhados, 81% das vítimas são negras ou pardas, embora a população negra e parda na região represente 62,1%. Esse dado reforça o padrão de violência policial associado ao racismo, apontado por autores como Luiz Eduardo Soares, Inácio Cano e outros. “Esse dado ilustra o impacto desigual da violência e confirma o que moradores e pesquisadores já sabem: o uso excessivo da força estatal recai com maior rigor sobre a população negra e periférica, que é rotineiramente desumanizada e vista como alvo em potencial”, destaca o relatório.

Além disso, as operações policiais nas favelas têm consequências severas para a vida cotidiana dos moradores. Durante essas incursões, escolas são fechadas, postos de saúde interrompem o atendimento e o comércio local é afetado, criando um ambiente de insegurança constante. “O direito à segurança pública deve ser garantido para todos, mas o que se vê nas favelas é um direito negado à população pobre e negra, enquanto ações de repressão pontual substituem o policiamento preventivo e ostensivo nas áreas centrais da cidade”, pontua o estudo.

Críticas à meta de redução do governo e proposta de fiscalização monitoramento interinstitucional

Uma das críticas centrais do relatório é à meta de redução de letalidade estabelecida pelo governo do Rio de Janeiro, fixada em 20,5% para 2024, atrelada aos índices de roubo no estado. O estudo considera a metodologia insuficiente e questiona o uso do modelo estatístico ARIMA, adotado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), que relaciona as mortes por intervenção policial a ocorrências de roubo. “O modelo ARIMA é limitado para prever os efeitos de intervenções ou mudanças nas políticas, pois não identifica explicitamente os mecanismos causais entre crimes de roubo e letalidade policial, ignorando o papel dos protocolos operacionais das forças de segurança”, argumenta o documento. Em vez disso, o estudo propõe que o STF estabeleça uma meta de redução de 70% e exija a criação de um indicador específico de letalidade policial.

Para garantir o cumprimento de uma meta mais robusta, o relatório sugere a criação de uma comissão interinstitucional que inclua representantes de diferentes esferas da sociedade, como membros da Defensoria Pública, movimentos sociais e acadêmicos especializados em segurança pública e direitos humanos. “A participação ativa da sociedade civil e de representantes do sistema de justiça é fundamental para evitar a perpetuação de um modelo que historicamente tem sido letal e desumano com a população mais vulnerável”, defendem os autores.

A ADPF como resposta ao Estado de Coisas Inconstitucional

A ADPF 635 teve início em 2019, quando o STF reconheceu o “Estado de Coisas Inconstitucional” na segurança pública do Rio de Janeiro, caracterizado pelo uso indiscriminado e abusivo da força nas favelas. Desde então, importantes avanços foram registrados, especialmente com a decisão liminar do STF, que em 2020 restringiu as operações policiais a situações “absolutamente excepcionais” durante a pandemia de Covid-19. Como resultado, houve uma queda de 71,7% na letalidade policial entre junho e setembro de 2020, comparado ao mesmo período do ano anterior. Esse decréscimo, como pontua o relatório, demonstra que a redução da violência letal é viável, “desde que haja controle democrático e comprometimento das forças policiais com a preservação da vida”.

Os autores do documento defendem que o STF deve impor uma diretriz rígida para a redução da letalidade policial, promovendo uma fiscalização monitoramento transparente e permanente sobre a atuação das forças de segurança. “A meta de 70% não é um número arbitrário, mas sim um objetivo possível e necessário para que o Estado do Rio de Janeiro se alinhe minimamente aos parâmetros internacionais e nacionais de respeito aos direitos humanos e ao direito à vida”, conclui o estudo.

Consequências para o futuro das políticas de segurança pública

A decisão do STF na ADPF 635 pode representar um marco para a reformulação das práticas de segurança pública em favelas, trazendo o compromisso da Justiça brasileira com a defesa dos direitos fundamentais e a dignidade da população periférica. “A aprovação de uma meta de redução mais expressiva e de um controle interinstitucional terá um impacto significativo para as famílias que vivem em áreas historicamente afetadas pela violência estatal”, afirmam os autores do relatório. Essa iniciativa não só atenderia ao clamor por justiça das comunidades atingidas, mas também serviria como modelo para outras regiões do país, onde a violência policial também atinge patamares alarmantes.

O julgamento de hoje representa um momento decisivo na defesa dos direitos humanos e da cidadania plena. A expectativa é que o STF avance na direção de uma segurança pública que respeite e valorize a vida de cada cidadão.

Fonte: Ascom GENI

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